WAVE 2019 WORKSHOP ARCHITETTURA VENEZIA IUAV

1º prêmio em projeto de exposição

Giudecca reaction

Diluir limites entre desenho urbano e arquitetura

Cristiane Muniz e Fernando Viégas

Imaginar um projeto para Veneza é, ao mesmo tempo, privilégio e desafio. Cidade que povoa o imaginário dos viajantes antes mesmo de lá estarem.

O trabalho desenvolvido para a Giudecca confirmou a responsabilidade: projetar a transformação urbana no arquipélago nos levou a estudar Veneza e seu crescimento, sobretudo no século XX, entendendo dinâmicas infra-estruturais numa condição peculiar, e nos aproximou de problemas urbanos que o conjunto lagunar apresenta, com exacerbação do turismo predatório e perda de população residente.

Dois conceitos foram definidores do trabalho: reação e sustentabilidade. O primeiro conceito foi a reação a esse lugar.

Em 1967, Richard Serra elaborou “drawing is a verb”, uma lista de ações como princípio de seu trabalho.

Propusemos aos estudantes pensar numa lista de reações a um determinado lugar como forma de intervir, entendendo que a condição urbana colocada apresenta diversas faces que devem ser consideradas no desenvolvimento da proposta.

Outro conceito foi a ideia de sustentabilidade. Palavra desgastada, porém com sentido urgente. Remete à necessidade de se pensar estratégias para garantir recursos suficientes e adequados para se viver melhor, e, no limite, assegurar a sobrevivência humana a longo prazo. Qual o significado de sustentabilidade numa condição tão especial quanto essa? Ideias para responder a essa pergunta podem estar no percurso que construímos para esse projeto.

O tema Veneza Sustentável, proposto pela coordenação do workshop 2019, suscita vários desafios.

O aumento constante nos níveis da água, acqua alta, causando inundações e prejuízos, se configura com um dos mais sérios enfrentamentos da cidade. Tema que vem sendo discutido na escala territorial e infraestrutural.

Podemos pensar que sustentabilidade em Veneza é possibilitar que a população continue morando e trabalhando aí.

Viver neste lugar ficou cada vez mais caro. Além disso, muitos apartamentos se tornaram unidades de locação rápida, contribuindo para esse esvaziamento.

A Giudecca não foge à regra: vivem aproximadamente 4.500 pessoas, e segue perdendo população. Um projeto, então, pode ser um instrumento de discussão para estas questões.

Morar na Giudecca

O arquipélago linear, de 3km por 300m, se configura historicamente como importante frente, a fondamenta turística, voltada para Veneza.

Esse protagonismo, no entanto, contribuiu para esconder outro lugar, relegado, para onde foram os programas sem visibilidade [cárceres, aterro sanitário, conventos religiosos, canteiros de construção de barcos, habitação popular], mas que se fazem necessários ao funcionamento do conjunto urbano. Essa operação estabeleceu o “fundo” das ilhas, gerando problemas de falta de infraestrutura de saneamento à dificuldade para circular.

Giudecca, que abriga as ilhas Sacca San Biagio, Sacca Fisola, Giudecca, San Giorgio Maggiore, é conhecida entre os moradores como a “ilha da ilha”, de difícil acesso, ligação feita por vaporettos, demorada e dividida indiscriminadamente com milhares de turistas. A falta de serviços básicos, aliada a poucos equipamentos públicos para uso cotidiano, contribui para o esvaziamento da população.

Apesar dessa condição, há inúmeras qualidades que podem se tornar oportunidades para a transformação da área.

A proximidade a Veneza, a sensação de tranquilidade que paira nas ilhas, sua condição topográfica acessível aos mais velhos ou crianças, com menos canais e menos transposições, a quantidade de unidades residenciais desocupadas que podem integrar um plano de adensamento habitacional incluindo os mais desfavorecidos, a oferta de equipamentos histórico-culturais e finalmente a relação, pouco explorada até agora, com a laguna, são qualidades ali encontradas.

Ao estudar os planos e projetos pré-existentes para a Giudecca, apresentou-se um estudo recente, nomeado Fondamenta Novissima, de autoria de C e C Arquitetos, que propõe a valorização da nova frente para a laguna a partir da instalação de uma rede de infraestrutura de energia e dados, e a construção de uma parte desse novo passeio.

Partindo destas reflexões e propostas, consideramos a importância de se estudar o arquipélago como um todo para dar unidade ao plano urbanístico. Ampliamos a área de intervenção para todo o arquipélago, porém a maior parte das ações se concentrou na parte oeste, ocupação mais recente, com partes deterioradas, esvaziadas ou em transformação.

Sacca San Biagio é uma ilha artificial construída entre os anos 30 e 50 do século XX para aterro sanitário. Possuía um incinerador que foi demolido e atualmente é o local de translado dos resíduos sólidos que vem de Veneza, das embarcações menores para as maiores, e são levados ao continente.

Há uma proposta, no projeto da Fondamenta Novissima, de C e C arquitetos, de transformar esse setor em fazenda de produção de energia. Essa produção alimentaria toda a nova ocupação da Fondamenta, e as novas pontes seriam a conexão infraestrutural, assim como seriam exemplares para acessibilidade.

Imaginamos que, em alguns anos, após a descontaminação do terreno, a ilha poderia ganhar outro destino, de uso aberto ao público, um parque.

Um centro de educação, trabalho social e tratamento dos resíduos para a sede da empresa coletora foi proposto na ilha vizinha.

As residências ociosas são um tema de interesse universal, valorizar a ocupação das estruturas existentes, em detrimento da construção de novos e grandes projetos de habitação. Por exemplo, o conjunto moderno construído na Sacca Fisola a partir de 1960, outra ilha artificial, de caráter monofuncional, poderia ser reocupado no nível do térreo com novos serviços e pequenas atividades comerciais.

Ao mesmo tempo, inserções pontuais de novas e poucas unidades habitacionais poderiam contribuir para renovar de forma positiva a ocupação existente, assim como proporcionar estratégias de financiamento para obras públicas.

A igreja de San Gerardo Sagredo ganhou uma praça de água onde pequenas embarcações poderiam chegar a esse novo centro do bairro.

Essa estratégia de acessibilidade e habitação+serviços foi proposta em diversos pontos do arquipélago, sempre com o intuito de ativar lugares pouco habitados ou esvaziados.

Na Sacca Fisola, ainda, há um conjunto esportivo de uso público, um clube com piscinas, quadras poliesportivas, garagem de barcos, com aulas de remo, natação, futebol, basquete, vôlei. Para esse lugar, devido a sua importante localização, foi proposta uma praça com frente para a laguna, um farol e um mirante, de onde se descortina a vista deslumbrante, assim como uma nova piscina flutuante, anunciando os usos ali existentes e se beneficiando da localização privilegiada.

O projeto original para o quartiere residencial IACP de Gino Valle, de 1986, previa um novo canal na porção sul. A ideia foi retomada para relacionar as residências ao novo polo de tecnologia implantado nas antigas ruínas industriais vizinhas. Aproveitar essas estruturas é valorizar a identidade industrial da Giudecca, integrando novos usos ao tecido pré existente.

Como há um uso sazonal dos espaços livres, sobretudo voltados para Veneza, com potente ocupação turística durante o dia e esvaziamento gradativo à noite, buscou-se ampliar a freqüência horária com a implantação de um edifício universitário, nova sede da IUAV [que vem se expandindo para outras regiões dentro e fora de Veneza], lugar de produção de conhecimento (em justaposição ao lugar da produção de embarcações, apresentado logo a seguir).

O conjunto se constitui por um pequeno edifício de residência estudantil, entre os moinhos Stucky [hotel Hilton] e Fortuny [fábrica de tecidos em funcionamento], indicando de forma singela, no canal da Giudecca, nova intervenção na ilha. Conectado pelo pequeno canal e um passeio público, essa construção se interliga à praça da universidade e ao edifício maior, que avança sobre a laguna. Intervenção transversal ao arquipélago, regra que se repete algumas vezes, a proposta indica uma ação em direção a Veneza e a aproximação da laguna com o interior da ilha.

O projeto para a Giudecca procura construir uma nova fondamenta através dos espaços públicos e pequenos serviços e comércios, até chegar aos Squeri.

Originalmente essa parte voltada para a laguna era ocupada por estaleiros de produção de pequenas embarcações, inclusive gôndolas. Produção familiar, artesania e indústria, que foi perdendo lugar e tende a desaparecer.

O desenho da fondamenta foi feito para que se torne um passeio público, contínuo, interligado, de acesso franco, mas procurando manter visível, valorizado, acessível e produtivo, os squeri que fortemente caracterizaram esse lugar. Produção e memória em um novo tempo.

A face da ilha voltada para a laguna, ocupada pelos pequenos estaleiros, tem limites pouco definidos até hoje, não lineares e cheio de pequenas estruturas. Essa configuração orientou a proposta para a Fondamenta aqui descrita. Pequenos piers, plataformas, escadas, rampas e artefatos de conexão do passeio público com a água foram propostos ao longo do percurso, valorizando a nova frente e a história desse lugar.

O plano urbanístico que possibilita o passeio da Giudecca pela laguna pressupõe um conjunto de pequenas reações a cada lugar, indicando oportunidades de intervenção íntegra e implantação aos poucos, ao longo do tempo.

Difícil não lembrar de Italo Calvino e as cidades invisíveis.

Como Marco Polo que disse “Todas as vezes que descrevo uma cidade digo algo a respeito de Veneza”, parece impossível não carregar São Paulo conosco.

Documentos de referência

Benevolo, Leonardo. Venezia- il nuovo piano urbanistico. Editori Laterza [1996].

Planos específicos de reocupação residencial: Alvaro Siza [1983], Cino Zucchi [1997-2003], Giorgio Macola, Gino Valle [1986], Franco Mancuso [2007], Luca Rossi [2003].

Plano de intervenção Fundamenta Novíssima, C e C arquitetos [2016-2017]

Obras de referência

Teatro verde [Fondazione Giorgio Cini], arc. Luigi Vietti e Angelo Scatollin, 1954

Centro Studi [Fondazione Giorgio Cini], arc. Ugo Camerino, 2010

Biblioteca Manica Lunga [Fondazione Giorgio Cini], arc. Michele de Lucchi, 2009

Residências Fabbrica del ghiaccio, arc. Pastor architetti associati, 1994

Residências Pastificio Zaggia, arc. Luca Rossi, 1997

workshop de 3 semanas [17 de junho a 05 de julho de 2019] no Instituto Universitário de Arquitetura de Veneza [IUAV]

giudecca reaction

coordenação cristiane muniz e fernando viégas

colaboração manuel minto

estudantes dina abou saleh, evangjello ahmeti, luca amici, luca anselmi, michele basso, tommaso bellomo, luca bertuol, alessandro bruno, mary jane chalfoun, silvia chiarini, denis convertino, fabio costantini, arianna curtolo, alex dallatorre, valeria defilippis, flavia de sales teles da fonseca, martino dereani, alfa dolfini, silvia dorigo, luis giullherme doring, jacopo uimovich, matteo ergazzori, alice garbo, gabriele greco, ka ho lee, isabella lovato, katharina magi, chiara marchi, anita martinelli, olimpia maruzzi, serena midolini, beatriz pacheco gaviao, giulia pecoraro, vittoria pizzol, matteo rebuffoni, veronica rossa, eleonora sartoretto, alice scopinich, massimiliano selenati, irene serafin, amela smajic, ion stamati, giovanni stevanato, elena tabarelli de fatis, leonardo tallerico, letian tang, francesco tassello, stefano tesser, fabio toppan, giorgia trevisan, matteo vecchiato