CONCURSO MUSEU MARÍTIMO DO BRASIL, 2021

Como representar o mar?

 

Em 1942 o oceanógrafo e geofísico sul-africano Athelstan F. Spilhaus trouxe a público seu projeto em curso: a construção de um mapa e a projeção necessária para a representação de toda a extensão marítima terrestre de forma contínua, e com o mínimo possível de distorções. Quase quatro décadas depois, já com modelos computacionais e desenhos desenvolvidos com o auxílio de geodesistas, Spilhaus revelaria mais sobre sua empreitada:

 

“[…] Os melhores pólos para mapas oceânicos inteiros são a área terrestre antípoda substancial na China (perto de Hankou) e na América do Sul (perto de Córdoba, na Argentina), com um corte que os une através do Estreito de Bering. […] As distorções nos dois cantos dos pólos na América do Sul e na China são muito grandes, mas é na terra que queremos concentrar o máximo de distorções. Este mapa tem a propriedade adicional extraordinária de ser duplamente periódico. Isso significa que, se você tiver várias cópias, poderá combinar as bordas perfeitamente e repetir o padrão como azulejos decorativos. O mural que se repetiria infinitamente, nos diria que um verdadeiro mapa do mundo não tem bordas.” (SPILHAUS, Athelstan. To see the oceans, slice up the land. Smithsonian, nov 1979)

 

O pertinaz projeto de Spilhaus materializa como esforço e como experiência a relação humana com os mares desde sempre e sobretudo a partir do século XV – aquilo que separa e une toda a superfície terrestre seca; que simboliza o infinito do horizonte inalcançável e que se renova de forma permanente nas marés que tudo levam e trazem; de beleza plácida e suave que com persistência desgastou rochas e criou praias, mas também arrebatadora em suas tempestades e falésias; lar de criaturas mitológicas mágicas, por vezes assustadoras, e território próximo e cotidiano para tantos povos e civilizações; fonte do sal que gera vida e tão fundamental para preservar alimentos, justamente porque em excesso se torna ardido e quase estéril; desafio permanente que impulsionou a humanidade a desenvolver tecnologias de escala e complexidade tão diversas quanto pequenas amarrações e gigantescos submarinos.

 

 

Potência natural, paisagem cultural, beleza cantada por nossos poetas

 

Tal projeto de mapa, que busca representar os oceanos de todo o mundo, trata assim também, indiretamente, da complexidade de propor e materializar um Museu Marítimo capaz de despertar a consciência das diversas formas através das quais os mares influenciam e determinam a vida e o habitat dos seres vivos; bem como desenvolver a compreensão das articulações históricas e contemporâneas dos oceanos com estudos, das ciências naturais e qualidade de vida às humanidades, artes e ciências sociais. Falar do mar a partir do Brasil e na localização geográfica e historicamente estratégica da antiga Doca da Alfândega do Rio de Janeiro traz ainda maiores responsabilidades. Faz-se necessário criar meios para experienciar e abordar espacial e expograficamente o mar como potência natural em sua topografia e ecossistema ainda parcialmente conhecidos bem como articulado à gigantesca bacia hidrográfica que permeia o território nacional e, sobretudo, seu papel cultural e histórico fundamental – contato com a Europa e África em seus trânsitos culturais e memórias ainda excessivamente vivas e dolorosas que nos constituem; o Rio de Janeiro, sua paisagem e história como ponto de contato desse universo; tecnologias tanto caiçaras e ribeirinhas, como o crescimento, constituição e atuação de nossa Marinha; a beleza de nossa gigantesca costa tantas vezes citada e cantada por nossos poetas.

 

 

Da cidade ao mar: novos espaços para experimentar a orla carioca e sua história

 

Articulando-se à paisagem histórica e contemporânea do entorno, o projeto proposto se organiza em dois corpos. Um edifício que, como farol ou prático, se destaca sutilmente na paisagem e acolhe o visitante, fazendo a intermediação entre a cidade, o molhe, as áreas de visita do museu, o mar. E um grande corpo elevado que, apoiando-se na estrutura histórica do molhe, ergue-se para garantir visuais tanto das diversas embarcações ali atracadas quanto das ilhas do entorno e do horizonte do mar. Essa generosa sombra, um novo espaço público para a cidade, faz com que o Museu não volte as costas para a baía, protegendo os que aguardam para entrar. A articulação do museu com o tecido urbano se dá de forma sutil oferecendo ao percurso da orla novas pequenas praças – molhadas e secas – e convidando o visitante ao ingresso de forma contundente. A continuidade do desenho do piso da cidade adentra a praça que compõe os espaços frontal e central do edifício prático, orientando até a ponte levadiça – equipamento que remete, tanto em sua lógica construtiva quanto como marco simbólico, às docas marinhas – que instiga a travessia franca e livre ao molhe. A circulação pelas áreas sombreadas que dão acesso tanto às áreas internas expositivas do museu, quanto à visita ao navio Bauru, ao submarino Riachuelo, aos diversos embarques para passeios e outros possíveis navios-museus, levam à ponta do cais. Atravessar a ponte e seguir pela sombra no molhe é lentamente afastar-se da cidade, seus cheiros e barulhos e gradualmente escutar as ondas e os pássaros do ambiente marinho, sentir o vento e o cheiro salgado até chegar à ponta, sentir o sol e vislumbrar ao mesmo tempo o mar e a paisagem da orla carioca, tão perto e já tão distante.

 

 

O prático: orientar, acolher, articular

 

Organizando fluxos – chegadas e partidas – e reunindo a estrutura administrativa, o prático é o edifício que estabelece o contato direto com o tecido urbano, além de oferecer espaços que podem servir de apoio tanto para atividades do Museu, quanto para as demais estruturas da Marinha, e ainda para outras atividades ou eventos afins. No térreo, a partir das praças propostas, encontram-se os acessos à loja e livraria, ao foyer do auditório e ao espaço educativo que acolherá e recepcionará grupos na chegada ao Museu, todos com dupla altura. O desenho e implantação do edifício é elaborado com o cuidado de, ao mesmo tempo destacar sua presença como entrada, mas não esconder a visão do cais nem destoar em escala dos demais edifícios históricos circundantes. O respeito e a conversa com os edifícios da Capitania dos Portos e do Tribunal Marítimo, a paisagem histórica constituída, é prerrogativa que garante sua implantação organizando os acessos distintos e privilegiando vistas. Subindo aos andares superiores encontra-se o restaurante – que, como espaço autônomo, pode servir tanto ao museu quanto à cidade – oferecendo visuais das praças e do cais; e então a estrutura administrativa e salas de apoio. Ainda nesse edifício, no subsolo, encontra-se a infraestrutura técnica que se liga e dá suporte aos sistemas hidráulico, elétrico e de ar condicionado do cais.

 

 

O cais: lançar-se ao mar, explorar, ler a paisagem

 

Apoiado na estrutura em arcadas do antigo molhe, destacando-a e acompanhando sua modulação, ergue-se o edifício que, ao afastar-se do chão, recoloca simbolicamente em seu tempo o desafio estrutural antes enfrentado na construção do Cais da Alfândega. A estrutura esbelta de peças seriadas que pode ser facilmente montada [reduzindo impactos de obra na área do píer] evidencia o caminho dos esforços de carga da cobertura e do piso, e se faz presente dando caráter ao edifício: dialogando a todo momento com equipamentos de tecnologia de nosso tempo bem como com infraestruturas e guindastes portuários que habitaram o espaço desde sua primeira construção. Paisagem cultural consolidada. Levantar o edifício significa não só liberar o térreo como extensão do espaço público da cidade, aqui coberto e protegido do sol, mas também manter o molhe como lugar de embarque e desembarque, função original, e ainda ampliar a largura da construção e assim melhor acomodar os espaços expositivos. Transpor a ponte levadiça, circular pelo térreo coberto, tomar um sorvete vendo, ouvindo, cheirando e sentindo a brisa do mar, significa por si só um passeio; mas é também esse passeio que dá acesso às diversas atividades do museu, através de ingressos específicos ou combinados: exposições permanente e temporária; visita às embarcações do acervo atracadas ou outras que venham ali atracar; as saídas para os passeios pela baía. O edifício se organiza também dispondo as áreas de reserva técnica e depósito destinado às exposições temporárias no ponto de mais fácil acesso do molhe, separando a entrada e circulação dos visitantes dos acessos técnicos e de carga. Uma talha pendurada em uma viga contínua desde as duas extremidades permite a elevação e movimentação de grandes peças para dentro do museu. O fechamento, com maior ou menor transparência a partir dos usos internos, algumas vezes privilegia o afastamento para construção de experiências imersivas, outras tira partido de visuais da cidade, das ilhas, do mar. O controle de acesso às exposições, localizados apenas nas entradas das salas, permite ainda o livre acesso ao café na cobertura, outro ponto para eventos específicos e autônomos com relação ao museu, e descortina vistas únicas da paisagem circundante, através das quais se pode ler visualmente as transformações históricas e geográficas da cidade.

 

 

Tecnologia para navegar e habitar: sustentabilidade e acessibilidade como desafios contemporâneos

 

Se, por um lado, a definição primeira de arquitetura é a transformação da natureza com vistas a conquistar a habitabilidade e, por outro, navegar significou ao longo da história o desenvolvimento permanente de novas tecnologias que permitissem a superação de limites; o encontro entre esses dois universos significa a busca pela superação de duas questões fundamentais embora bastante distintas de nosso tempo: sustentabilidade e acessibilidade. No que tange os esforços por sustentabilidade, é importante destacar como as características formais dos edifícios favorecem por si só a troca de calor através da ventilação natural sempre que possível e o posicionamento de possíveis placas fotovoltaicas, tornando mais eficientes os sistemas de energia e climatização a serem implantados. O sistema de coleta de esgoto proposto faz uso da tecnologia a vácuo como forma mais eficiente a partir do píer e também com menor consumo de água. A certificação LEED afirmará o caráter exemplar do edifício também como aspecto educativo na convivência harmoniosa entre o mar e infraestruturas de grande porte. Em sentido distinto, embora articulado, novamente ao pensar o museu como território educativo, é fundamental que se garanta não apenas o atendimento a normas e leis relativas à acessibilidade, mas que se pense em atender às demandas de um público diverso, incluindo pessoas com deficiência, tanto na circulação pelos novos espaços públicos propostos quanto no desenho expositivo, respeitando e reconhecendo características particulares de restrição de mobilidade, cognição e sensorial. A diversidade das experiências propostas no trajeto expositivo prevê estratégias diversas de envolvimento de pessoas com deficiência aos temas expositivos e à ambiência do edifício, tornando o museu uma experiência cotidiana, acessível e popular.

 

 

Percurso expositivo: experiências, articulações e possíveis desdobramentos

 

  • Iniciação e batismo.

Introdução ao ambiente marinho em sua enorme riqueza natural, histórica e cultural. O Brasil, sua costa e sua extensa bacia hidrográfica – conexões com Europa e África, mas também intra-continental entre os oceanos Atlântico e Pacífico

 

  • Rio de Janeiro, paisagem cultural e conexões com o mar

Paisagem carioca como beleza e vocação. Urbanização, transformações progressivas da paisagem e a conexão com o mar.

 

  • Cultura caiçara e ribeirinha – mitos, tecnologias e criação

Regionalismos e universalidades, a vida junto e a partir do mar. Tradições e mitos. A música brasileira e o mar. Território da imaginação marinha.

 

  • A história das navegações e o Brasil

História das navegações, tecnologias e violências – lógicas coloniais e memórias de dor

local  espaço cultural da marinha, rio de janeiro, rj

 

ano 2021

 

autora  cristiane muniz

 

coautores fernando viégas, joaquin gak, ana paula pontes, barbara silva, marcelo pontes, marianna al assal, marina canhadas, matheus pardal

 

colaboradores  leonardo sarabanda, manuela raitelli, julia marini

 

consultores

sistemas estruturais companhia de projetos

 

instalações phe projetos

 

climatização thermoplan engenharia

 

sustentabilidade, conforto ambiental, acústica, energias renováveis, resíduos CA2

 

automação bosco e associados